Augusto Soares – Heterônimo 1

 

10 de Copas

 

– Carta p/ Clarice

 

Clarice, veja

há algo nos olhos que dizemos                    medo

há algo no agora que dizemos                                 nunca

o que sabemos, eu e você

é que tanto as tendências como as palavras

cedo ou tarde

apontam para essa coisa de loucura

ou então essa coisa de razão

mas pouco importa

ainda somos a roleta onde a criança de um Deus

brinca de apostas

e os dados, bem

brincam de fazer as regras

brincam com a hermenêutica conspiração russa paralelismo

imperativo Kantiano extermínio das massas dor

enquanto nós, eu e você

ainda estamos naquele tempo

(velho tempo de Hemingway Whitman)

onde quem brinca de papel e caneta

tem que saber das coisas

coisas como

formula quântica teoria da desertificação linguística ativos sobre passivos o sorriso do homem

o que ninguém sabe, e eu também não sei

por que há pessoas que se escondem com toques de recolher

pessoas que se escondem com toques de lábios

pessoas que

se escondem

a metafísica, tua metafísica, essa metafísica

pouco diz o porquê do filho chorar

enquanto o pai enche a caneca

e ele enche varias vezes

e era uma caneca bonita

dizia “bondinho” “arcos da Lapa” “cidade maravilhosa” “we love Rio”

tinha um coração vermelho nela

por aqui, Clary

ainda estamos no tempo

onde as estampas dizem mais de um país do que seus políticos

e é por isso que nos leem, Clary

alguém precisa dizer que seremos mais nós amanhã

como as cartomantes fazem com um 10 de Copas

falam que as luas de Júpiter estão se alinhando

dizem tudo azul pra você tudo blue pra você país abençoado por Deus

mesmo que as democracias

estejam nas maquetes

e o homem com a caneca esteja no poder

mesmo com as pedras no caminho nas ruínas nos cálculos nos túmulos

até o Atlântico, Clarice

o Atlântico é a maior estátua da história desse país

cimento pedra e pôr do sol

palavra amar, amar palavra (espelho)

por isso eu te digo

precisamos das cartomantes e das Macabeas

precisamos das pedras

das estéticas das estáticas

(a geração pop estará em Angola)

requentando a paixão tropical, baby

requentando a exaustão do povo

do grito

do verso

do passado

do Atlântico

we love New York so much

as cartas, Clary

não me explicaram por que a palavra espelho

se parece tanto com a palavra medo

por que os Van Goghs e as orelhas

os Sá Carneiros e os suicídios

Nietzsches e as demências

por que as barrigas vazias

e as canecas cheias

enquanto a cartomante na pensão do Sul

passa o dia inteiro esquecendo as coisas

e dizendo que vai chover

e ora, Clary, nunca chove

os desertos serão mais desertos amanhã

o 10 de Copas não entende de Júpiter

eu e você sabemos

que ele só sabe

explicar

O amor.

 

 

(Ps: ad infinitum abbey road)

18 thoughts on “Augusto Soares – Heterônimo 1

  1. Me cuesta un poco leer, por la diferencia de idioma, pero me gusta mucho tu poesía. Tu heterónimo, por cierto, me recordó a Bernardo Soares, uno de los heterónimos de Pessoa. Me encanta el poeta portugués.

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    • Olá! Sim, concordo contigo. Acho interessante a temática da cartomante, por dois aspectos. Primeiro, por lidar com o plano do desconhecido, independente se existente ou não. A escrita muito se faz nesse tatear pelo escuro. Segundo, sendo o poema um discurso também direto à Clarice Lispector, se conheces o livro “A Hora da Estrela”, sabes que ele gira em torno de uma personagem marginalizada, que encontra os dois extremos, amor e morte, na revelação de uma cartomante. Queria uma Ode à Clarice no processo de construção de meu livro, e achei válida a abordagem. Abraço! 🙂

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      • Mariel queriro, grato por tua leitura. Ando num reforço e estudo feroz nesse Heteronimo, o Augusto. Derrida, e o conceito da desconstrução permeia a essência da poesia dele. Aos poucos vou postando a produção, a contribuição dele é a última que falta para a conclusão de meu livro. Grande abraço a ti, amigo. Guilherme

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    • Irmão! Fiquei muito contente com teu comentário. O Augusto foi um Heteronimo que reformulei por completo, tendo em vista os originais aprovados pela editora. Ele fazia uma poesia erudita, mais ao molde clássico, romântica em excesso. Pela necessidade do tempo e da contemporaneidade, desfiz-me do Augusto 1, que tinha como modelo Vinicius, Neruda, Mallarme, e criei esse novo. Amadureco constantemente nele, e é um de meus poetas que mais gosto. Grato por tua leitura, irmão. Grande abraço 🙂

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